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Entre a Cruz e a Espada: O Impacto da Religião na Vida de Mulheres em Situação de Abuso Conjugal

  • Foto do escritor: Petter Jones
    Petter Jones
  • 12 de jun.
  • 19 min de leitura


1. Introdução: A Fé em Crise – Quando o Sagrado Encontra a Dor do Abuso


A violência doméstica contra a mulher é uma chaga social persistente e dolorosa, cujas raízes se estendem profundamente em estruturas culturais, econômicas e, de maneira significativa, religiosas. É um fenômeno que transcende classes sociais, etnias e níveis educacionais, mas que encontra, no âmbito da fé, um terreno particularmente complexo. Para muitas mulheres, a religião é uma fonte de consolo, esperança e comunidade. No entanto, para aquelas que vivenciam o abuso nas mãos de seus maridos, a mesma fé pode se apresentar como um labirinto de interpretações e expectativas que, em vez de libertar, aprisiona. A estatística de que 40% das mulheres atendidas por organizações não governamentais que lidam com violência doméstica se declaram evangélicas¹ é um sinal de alerta, sugerindo que as comunidades de fé podem não estar oferecendo o refúgio esperado, ou que, em certos casos, a própria dinâmica religiosa pode estar interligada à vulnerabilidade dessas mulheres.

Esta alta prevalência de mulheres religiosas buscando auxílio fora de suas comunidades de fé levanta questionamentos profundos. Se a religião ocupa um lugar central em suas vidas, por que a primeira busca por socorro se dá, frequentemente, em espaços seculares? Este fato pode indicar que o ambiente religioso não é percebido como seguro, compreensivo ou capacitado para lidar com a complexidade da violência doméstica. Pior ainda, em algumas situações, ele pode ser parte do problema, contribuindo para o silenciamento e a manutenção do ciclo de abuso.

O presente relatório se propõe a analisar a "perturbadora ambiguidade" da religião¹ no contexto da violência conjugal. A religião, com seus textos sagrados, suas doutrinas e suas práticas comunitárias, pode ser tanto um bálsamo que fortalece a mulher para enfrentar e superar a violência, quanto um instrumento que, nas mãos erradas ou através de interpretações distorcidas, serve para justificar a opressão, impor o silêncio e perpetuar o sofrimento. Esta ambiguidade não é uma característica passiva, mas um campo dinâmico, ativamente construído e disputado através de interpretações teológicas e da vivência comunitária. O impacto da religião – seja ele opressor ou libertador – não é um destino selado, mas o resultado de uma contínua luta hermenêutica e social. O objetivo deste trabalho é, portanto, explorar, sob a ótica de uma teologia social crítica, as multifacetadas e frequentemente contraditórias formas como a religião impacta a vida de mulheres abusadas, examinando doutrinas, práticas institucionais e o potencial transformador da fé.


2. "Em Nome de Deus?": Como Interpretações Religiosas Podem Perpetuar a Violência


A relação entre religião e violência doméstica é marcada por uma complexidade que exige um olhar crítico sobre como certas interpretações de textos sagrados e doutrinas podem, inadvertidamente ou não, criar um ambiente propício à perpetuação do abuso. Longe de ser uma causa direta, a religião pode se tornar um fator de legitimação e manutenção da violência quando suas narrativas são distorcidas para justificar o poder masculino e a submissão feminina.


A Doutrina da Submissão Feminina e suas Consequências


No cerne de muitas discussões sobre o papel da mulher em contextos religiosos, especialmente cristãos, encontra-se a doutrina da submissão. Passagens bíblicas como "Mulheres, sede submissas aos vossos maridos, como ao Senhor" (Efésios 5:22) ou "Esposas, sede submissas a vossos maridos, como convém ao Senhor" (Colossenses 3:18) são frequentemente citadas.² Teólogos e especialistas contemporâneos alertam para a crucial necessidade de contextualizar esses textos, escritos em sociedades patriarcais, para evitar o fundamentalismo e o anacronismo.² No entanto, a interpretação literal e descontextualizada dessas passagens persiste em muitos círculos.

Um estudo aprofundado sobre Colossenses 3:18 ("Αἱ γυναῖκες, ὑποτάσσεσθε τοῖς ἀνδράσιν ὡς ἀνῆκεν ἐν κυρίῳ" – "As mulheres submetei-vos aos maridos, como convém no Senhor") revela como o verbo grego hypotassesthe pode ser entendido como uma sujeição "rígida" e "incondicional".³ Quando tal interpretação é aplicada de forma atemporal, ela ignora a importância da igualdade de gênero e reforça concepções de inferioridade feminina, criando um terreno fértil onde o abuso pode ser disfarçado de "disciplina" ou reivindicado como um "direito" do marido. A conclusão desse estudo é alarmante: uma "hermenêutica da submissão" pode, tragicamente, formar "discípulos opressores em nome do sagrado".³

Essa visão não é um fenômeno recente. Figuras religiosas proeminentes ao longo da história, como Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero e Calvino, defenderam a submissão da mulher ao homem, inclusive em situações de violência física.¹ Isso demonstra que a interpretação patriarcal possui raízes históricas profundas na tradição cristã, o que torna sua desconstrução um desafio ainda maior. A internalização desses discursos religiosos sobre a submissão e o dever de manter o casamento a qualquer custo pode criar barreiras psicológicas e espirituais imensas. A mulher pode passar a acreditar que sua sujeição é um mandato divino, levando-a a suportar níveis extremos de abuso por "medo de pecar contra Deus" ou por uma "alienação religiosa".³ O agressor, por sua vez, pode se sentir legitimado por essas mesmas crenças, perpetuando o ciclo de violência com um senso de impunidade sancionado divinamente.


O Peso da "Indissolubilidade" do Casamento e a Cultura do Silêncio


Aliada à doutrina da submissão, a ênfase na indissolubilidade do casamento, presente em diversas tradições religiosas4, pode se tornar uma armadilha para mulheres em relacionamentos abusivos. A pressão para "manter o casamento" a qualquer custo, muitas vezes para evitar o "escândalo" na igreja, é uma realidade dolorosa. A experiência pessoal de Maria Joaquina Da Cunha, autora de uma análise sobre violência doméstica e igrejas evangélicas, é um testemunho pungente: aconselhada pastoralmente a "manter o casamento", ela só conseguiu romper o ciclo de abuso após tentativas de suicídio e com apoio familiar, não eclesiástico.¹

Algumas igrejas, ao se recusarem a denunciar agressores ou a questionar as estruturas institucionais e sociais injustas que perpetuam a violência, tornam-se cúmplices da "cultura do silêncio e da omissão".¹ Ao tratar a violência contra as mulheres como algo banal, ou como um problema a ser resolvido exclusivamente no âmbito privado do casal, acabam por legitimá-la. Essa banalização é, em si, uma forma de violência simbólica que reforça a visão de mundo patriarcal, na qual o homem pode e deve exercer seu poder e autoridade sobre a mulher e os filhos.¹ Essa cumplicidade institucional não se manifesta apenas no silêncio, mas também na promoção ativa de uma "hermenêutica da submissão".³ Quando essa hermenêutica é apresentada como "vontade divina", torna-se quase inquestionável para muitos fiéis, criando um sistema de controle social poderoso que transcende o relacionamento individual e se enraíza na estrutura da comunidade de fé. A mulher abusada, nesse cenário, enfrenta não apenas seu agressor, mas todo um sistema que a invalida, isola e, por vezes, a culpa.


Aconselhamento Pastoral Inadequado: Minimizando a Dor, Culpando a Vítima


O aconselhamento pastoral, que deveria ser um espaço de acolhimento e orientação, pode, em muitos casos, agravar o sofrimento da mulher vítima de violência. Quando o sofrimento é diminuído, banalizado e naturalizado, a mulher pode ser levada a internalizar a ideia de que "o sofrer faz parte do ser mulher".¹ A teologia tradicional, em algumas de suas vertentes, contribuiu para essa visão ao não considerar adequadamente o sofrimento feminino em sua reflexão, ou, pior, ao culpabilizar a mulher pela introdução do pecado no mundo, reforçando sua inferiorização.¹

Um estudo sobre os desafios do aconselhamento pastoral em casos de violência doméstica aponta para a necessidade premente de os conselheiros irem além das Escrituras Sagradas, integrando conhecimentos de outras ciências como a psicologia e as ciências sociais.6

 A violência precisa ser compreendida pela religião cristã como um "problema de ordem social e não apenas espiritual".6 A insistência em soluções puramente "espirituais", como oração e jejum, desconsiderando os sentimentos da vítima e a necessidade de segurança e justiça, configura um aconselhamento irresponsável.6 Um dos maiores desafios para as igrejas é "repelir toda estrutura autoritária, inclusive a religiosa, que venha tolerar a presença de violências no âmbito doméstico".6 Isso exige que o conselheiro crie um panorama histórico, cultural e social da pessoa aconselhada que explique a violência sofrida e, por vezes, causada, sem se abster apenas nos ensinamentos bíblicos ou basear-se unicamente na fé.6

A tabela abaixo ilustra como diferentes interpretações de passagens bíblicas podem ter impactos diametralmente opostos na vida de mulheres em situação de abuso:


A Dupla Face da Submissão: Interpretações Bíblicas e Seus Impactos

Passagem Bíblica Relevante

Interpretação Patriarcal Comum e suas Consequências para Mulheres em Abuso

Interpretação Crítica/Libertadora e suas Implicações para o Empoderamento e Segurança da Mulher

Efésios 5:22-24 ("Mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos...")

A mulher deve obedecer incondicionalmente ao marido, mesmo que ele seja abusivo. O sofrimento é uma "cruz" a ser carregada em silêncio.

A submissão é mútua ("sujeitando-vos uns aos outros no temor de Deus", Ef 5:21). O amor do marido deve ser sacrificial, como o de Cristo pela Igreja, o que exclui qualquer forma de abuso. O foco é no amor e respeito mútuos, não na dominação.

Colossenses 3:18 ("Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como convém ao Senhor.")

Reforça a hierarquia rígida no lar, com o homem como autoridade inquestionável. A desobediência da mulher pode ser vista como desobediência a Deus.

O contexto histórico da carta (possivelmente deuteropaulina, escrita em um ambiente de forte patriarcalismo) sugere que tais códigos domésticos podem ter sido uma estratégia de sobrevivência para as primeiras comunidades cristãs, não um ideal divino atemporal. Deve ser lido à luz de passagens sobre igualdade em Cristo (Gálatas 3:28).³

1 Pedro 3:1 ("Semelhantemente, vós, mulheres, sede sujeitas aos vossos próprios maridos...")

A mulher deve ganhar o marido "sem palavra", através de seu comportamento submisso, mesmo que ele seja descrente ou abusivo. Coloca o ônus da mudança do marido sobre a mulher.

Enfatiza a conduta respeitosa como forma de testemunho, mas não como uma licença para o abuso. A segurança e o bem-estar da mulher não podem ser sacrificados. A "pureza" e o "respeito" devem ser mútuos.

Gênesis 2:18 ("...Far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele.") e Gênesis 3:16 ("...e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.")

A mulher foi criada para servir ao homem (interpretação de "ajudadora" como subordinada). A dominação masculina é vista como consequência do pecado original, uma "ordem" divina.

"Ajudadora" (hebraico ezer) frequentemente se refere a Deus como ajudador de Israel, implicando força e parceria, não subserviência. Neged pode significar "correspondente a", indicando igualdade. A passagem de Gênesis 3:16 descreve as consequências trágicas do pecado, não um ideal divino a ser perpetuado.2

Esta análise demonstra que não são os textos sagrados em si que intrinsecamente promovem a violência, mas as interpretações que lhes são impostas. A luta por uma hermenêutica libertadora é, portanto, fundamental para desarmar o uso da religião como ferramenta de opressão.


3. A Teologia do Sofrimento e o Fardo do Perdão Mal Compreendido


Além das interpretações sobre submissão e a indissolubilidade do casamento, outras construções teológicas podem agravar a situação de mulheres vítimas de abuso conjugal. Entre elas, destacam-se a romantização ou santificação do sofrimento feminino e uma compreensão distorcida do perdão, que frequentemente impõe um fardo adicional à vítima.


A Santificação do Sofrimento Feminino


Em certas correntes teológicas, o sofrimento, especialmente o feminino, pode ser apresentado não como algo a ser combatido e superado, mas como um caminho para a santidade, uma prova de fé ou uma forma de identificação com o Cristo sofredor. Essa perspectiva pode levar à aceitação passiva da violência, como se o "sofrer fizesse parte do ser mulher".¹ A teologia tradicional, em muitos momentos, não apenas falhou em considerar o sofrimento específico das mulheres em sua reflexão, mas também contribuiu para a sua perpetuação ao, por exemplo, culpabilizar a mulher pela introdução do pecado no mundo, reforçando uma imagem de inferioridade e merecimento do castigo.¹

Quando o sofrimento é sacralizado, a mulher pode se sentir compelida a suportar o abuso em silêncio, acreditando que está cumprindo um desígnio divino ou demonstrando sua fortaleza espiritual. Essa visão impede que ela reconheça a violência como uma violação de seus direitos e de sua dignidade, e dificulta a busca por ajuda e por justiça. A dor, em vez de ser um sinal de alerta para uma situação intolerável, é reinterpretada como um teste espiritual ou um meio de purificação.


O Perdão Distorcido: "Não Basta Pedir Perdão"


A questão do perdão em contextos de abuso é extremamente delicada e frequentemente mal compreendida dentro das comunidades religiosas. Existe uma forte pressão, muitas vezes sutil, para que as mulheres perdoem incondicionalmente seus agressores. Esse perdão é frequentemente exigido sem que haja arrependimento genuíno por parte do agressor, mudança de comportamento ou, crucialmente, qualquer garantia de segurança para a vítima. A ênfase desproporcional no perdão da vítima, sem uma ênfase igualmente vigorosa na responsabilização do agressor e na necessidade de justiça restaurativa, pode, na prática, servir para proteger o agressor e a reputação da instituição religiosa, em detrimento da segurança e do bem-estar da mulher. Se a narrativa principal se concentra na capacidade da vítima de "superar" através do perdão, o foco se desvia das ações do agressor e da responsabilidade da comunidade em assegurar que o abuso cesse e que haja reparação.

Essa dinâmica pode levar a um ciclo vicioso onde o abuso continua porque as consequências para o perpetrador são minimizadas pela suposta "obrigação" da vítima de perdoar. A mensagem do Papa Francisco, divulgada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), oferece um contraponto importante: "Não basta pedir perdão".7 Diante dos abusos, especialmente aqueles cometidos por membros da Igreja, pedir perdão é necessário, mas não suficiente. As vítimas devem estar "no centro de tudo", e sua dor e danos psicológicos só podem começar a cicatrizar se encontrarem respostas e ações concretas para reparar os horrores sofridos e, fundamentalmente, para evitar que tais abusos se repitam.7

A instrumentalização do conceito de perdão em contextos de abuso pode se configurar como uma forma sutil, porém poderosa, de controle teológico. A espiritualidade da mulher é, paradoxalmente, usada contra ela. Se ela não perdoa "corretamente" – ou seja, rapidamente, incondicionalmente e sem exigir mudanças substantivas no comportamento do agressor ou garantias de sua própria segurança – ela pode ser rotulada pela comunidade religiosa como espiritualmente deficiente, amarga, rancorosa ou "não verdadeiramente cristã". Isso impõe um fardo emocional e espiritual imenso sobre a vítima, que já se encontra em estado de vulnerabilidade e trauma. A recusa em conceder um perdão apressado, ou a insistência em condições para tal (como o fim da violência, responsabilização e segurança), pode ser interpretada como falta de fé, quando, na verdade, representa um ato de autopreservação, uma afirmação de sua dignidade e uma legítima demanda por justiça. Isso revela como doutrinas espirituais podem ser distorcidas para manter dinâmicas de poder abusivas e silenciar as vozes das vítimas. A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, por exemplo, aborda o "Poder de Cura do Perdão"8, mas a inacessibilidade ao conteúdo específico9 impede uma análise mais detalhada de como essa abordagem se aplica, ou não, às complexidades do perdão em situações de abuso continuado e sem arrependimento. A tensão entre um ideal de perdão e a realidade da violência exige uma pastoralidade que priorize a segurança e a justiça para a vítima, antes de qualquer exortação ao perdão.


4. Vozes Proféticas: Religião como Força de Libertação e Resiliência


Apesar das pesadas críticas às formas como a religião pode ser instrumentalizada para perpetuar a violência e o sofrimento, é imperativo reconhecer a sua "perturbadora ambiguidade".¹ A mesma fé que, em certas interpretações, oprime, pode, em outras, ser uma fonte vital de força, resiliência e libertação para mulheres que enfrentam o abuso conjugal. Para muitas, a espiritualidade não é apenas um conjunto de doutrinas, mas uma relação viva que oferece consolo, sentido e a energia necessária para resistir e reconstruir suas vidas.


A Fé que Sustenta e Fortalece


Mesmo em meio à dor e ao desespero, muitas mulheres encontram na sua fé um esteio. Expressões como "Tudo está nas mãos de Deus" ou "Só Jesus na minha vida", proferidas por mulheres em situação de violência ¹, podem ser vistas não como resignação passiva, mas como manifestações de uma profunda confiança e uma busca por um poder maior que as sustente. Essa fé pode prover um senso de valor intrínseco e esperança que contradiz diretamente a mensagem desumanizadora do abusador. A força espiritual derivada dessa conexão pode ser o motor para a sobrevivência e, eventualmente, para a busca por libertação, seja através da reinterpretação da própria fé, da procura por comunidades mais justas ou do rompimento com o ciclo de violência. É crucial, portanto, que a crítica teológica social se dirija às interpretações e estruturas opressoras, e não à fé em si, que para muitas é um recurso inestimável.


Teologias Feministas e Releituras Libertadoras


Em resposta direta às interpretações patriarcais da Bíblia e da tradição cristã, que historicamente marginalizaram e oprimiram as mulheres, emergiu a teologia feminista.5 Este campo vibrante de estudo e ativismo propõe releituras de textos sagrados e da história da Igreja que enfatizam a igualdade, a justiça e a dignidade da mulher.³ Teólogas feministas buscam resgatar as vozes femininas silenciadas na tradição, questionar as estruturas de poder eclesial e construir uma teologia que seja verdadeiramente libertadora para todas as pessoas.

A proposta de reler os códigos domésticos neotestamentários, como Colossenses 3:18, no caminho da igualdade e do rompimento das diferenças de gênero, em vez de reproduzir o patriarcalismo estrutural ³, é um exemplo dessa abordagem. Trata-se de desconstruir a "hermenêutica da submissão" e promover uma "hermenêutica da libertação", que reconheça a imagem de Deus em cada mulher e afirme seu direito a uma vida livre de violência. Essas releituras são fundamentais para oferecer às mulheres alternativas teológicas que validem suas experiências e as empoderem em sua luta por justiça.


Coletivos Religiosos Ativistas e a Luta por Justiça de Gênero


A fé não se manifesta apenas na esfera individual, mas também na ação coletiva. No Brasil, têm surgido diversos grupos de mulheres religiosas que se organizam para lutar por justiça de gênero dentro e fora de suas comunidades de fé. A Rede de Mulheres Negras Evangélicas, fundada em 2018, é um exemplo notável. Este coletivo propõe uma releitura do texto bíblico sob a perspectiva interseccional de raça e gênero, desenvolvendo uma teologia feminista negra que aborda as opressões específicas vividas por mulheres negras evangélicas.¹² Elas tensionam tanto com o feminismo secular, por vezes hostil à religião, quanto com o conservadorismo dentro de suas próprias igrejas, criando um "terceiro espaço" de "féministas" – feministas de fé.¹² Suas ações públicas incluem protestos contra o racismo, o machismo e em defesa do Estado laico, demonstrando como a fé pode ser mobilizada para a transformação social.

Outros grupos, como "Evangélicas pela Igualdade de Gênero" ¹³ e "Católicas pelo Direito de Decidir" 15, também indicam a existência de um movimento mais amplo de contestação e busca por reforma dentro das tradições cristãs. Embora os detalhes específicos de todas as suas ações não estejam completamente elucidados nos materiais consultados, sua própria existência é significativa, sinalizando que a religião não é monolítica e que suas tradições contêm sementes para sua própria crítica e renovação. O surgimento desses coletivos representa uma espécie de "reforma interna", desafiando a hegemonia patriarcal a partir de uma perspectiva de fé e demonstrando a vitalidade e a capacidade de evolução dentro das tradições religiosas.


Perspectivas de Religiões de Matriz Africana: Empoderamento e Contranarrativas


Para além das tradições judaico-cristãs, é fundamental considerar as contribuições das religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, que frequentemente oferecem modelos de feminilidade, poder e agência distintos daqueles encontrados em contextos predominantemente patriarcais.17 Nessas tradições, o sagrado feminino muitas vezes ocupa um lugar central, e as mulheres podem exercer papéis de liderança significativos.

A figura da Pomba-Gira, analisada em um estudo sobre gênero e afrorreligiosidade, emerge como uma entidade transgressora que desafia estereótipos de gênero.18 Ela é associada à liberdade sexual, à autonomia e à capacidade de enfrentar a dominação masculina. Cânticos como "Arreda, homem, que aí vem mulher!" ou aqueles que a descrevem como "mulher de sete maridos" e "rainha da encruzilhada" que enfrenta seus inimigos com uma "forte gargalhada" são discursos de resistência que valorizam a força e a independência feminina.18 A análise sugere o "pombagirismo" como uma orientação analítica para os estudos de gênero, e observa a predominância do papel feminino na liderança de muitas organizações religiosas de matriz africana, refletindo uma visão do gênero feminino como sinônimo de força, coragem e liderança.18 Essas perspectivas oferecem um contraponto vital às narrativas que associam o feminino à submissão, mostrando que o sagrado e o poder feminino podem ser centrais e celebrados na experiência religiosa.

Essas diversas vozes proféticas – da resiliência individual à teologia feminista, dos coletivos ativistas às tradições de matriz africana – demonstram que a religião pode, e deve, ser um espaço de empoderamento e libertação para as mulheres. Elas representam a face da fé que se recusa a compactuar com a injustiça e que busca ativamente construir um mundo onde a dignidade de todas as mulheres seja respeitada e afirmada.


5. Rumo a Comunidades de Fé Seguras e Justas: Desafios e Recomendações


Transformar as comunidades de fé em espaços verdadeiramente seguros e justos para mulheres, especialmente aquelas em situação de violência, é um imperativo ético e teológico. Isso requer mais do que boas intenções; exige uma reforma estrutural, teológica e pastoral profunda, que confronte as raízes da violência de gênero dentro das próprias tradições religiosas.


A Urgência da Desconstrução Hermenêutica


Um passo fundamental é a desconstrução ativa e contínua das interpretações bíblicas e teológicas patriarcais que têm sido usadas para sustentar a violência contra a mulher. Conforme apontado pela pastora Romi Bencke, os pilares do patriarcado foram, em parte, construídos sobre uma hermenêutica patriarcal da Bíblia, conferindo à violência uma "base de argumentação teológica".19 Portanto, as igrejas têm um papel "extremamente relevante" em garantir que textos sagrados não sejam interpretados literalmente para reforçar a submissão feminina nos dias de hoje.19 É crucial combater os discursos fundamentalistas, que são inerentemente patriarcais e desrespeitam a vida das mulheres, da população negra e das pessoas LGBTQIA+.19 Essa desconstrução deve ser parte integrante da pregação, do ensino e da formação teológica.


Formação e Capacitação de Líderes Religiosos


Líderes religiosos – pastores, padres, rabinos, mães e pais de santo, entre outros – estão na linha de frente do acolhimento e aconselhamento. Sua formação e capacitação são, portanto, críticas. É necessário que recebam treinamento específico para um acolhimento responsável, ético e informado em casos de violência doméstica.6 Isso inclui compreender as dinâmicas complexas do abuso (ciclo da violência, táticas de poder e controle), os direitos das vítimas, os recursos legais e psicossociais disponíveis na comunidade, e os limites de sua atuação pastoral.20

Os desafios identificados no aconselhamento pastoral 6 devem ser transformados em diretrizes para uma formação eficaz. Os líderes precisam ser capacitados a:

  • Integrar conhecimentos de outras ciências (psicologia, serviço social, direito) em sua prática pastoral.

  • Reconhecer a violência doméstica como um problema social, cultural e de saúde pública, e não apenas como uma questão "espiritual" ou um "pecado individual".

  • Priorizar a segurança e o bem-estar da vítima, validando seus sentimentos e experiências, em vez de minimizá-los ou culpá-la.

  • Evitar soluções simplistas baseadas apenas na fé (como apenas orar ou jejuar pela restauração do casamento) quando há risco iminente.

  • Conhecer e encaminhar para a rede de proteção à mulher.

Essa formação deve ser contínua e abranger não apenas o clero, mas também lideranças leigas que atuam no aconselhamento e no cuidado pastoral.


Criação de Protocolos e Redes de Apoio


As instituições religiosas precisam ir além do discurso e desenvolver protocolos claros e eficazes para lidar com denúncias e situações de violência doméstica.²² Esses protocolos devem incluir:

  • Procedimentos para acolhimento seguro e confidencial da vítima.

  • Diretrizes para o encaminhamento para serviços especializados (delegacias da mulher, centros de referência, abrigos, assistência jurídica e psicológica).

  • Políticas de tolerância zero com relação a agressores, incluindo medidas de responsabilização e, se necessário, afastamento de funções de liderança ou ministeriais.

  • Canais de denúncia seguros dentro da própria instituição.

Além disso, é fundamental o estabelecimento de redes de apoio dentro das comunidades de fé, que possam oferecer suporte prático (como ajuda para encontrar um local seguro, transporte, cuidado com os filhos), emocional e espiritual genuíno para as vítimas, sempre respeitando sua autonomia e decisões. A Igreja tem a responsabilidade de oferecer espaços seguros para ouvir as vítimas, acompanhá-las psicologicamente e protegê-las.7


A Igreja como Agente de Transformação Social


O papel das comunidades de fé não deve se limitar a lidar com as consequências da violência; elas devem atuar proativamente na prevenção. Isso envolve educar seus membros sobre igualdade de gênero, relações saudáveis e respeitosas, e os direitos das mulheres. A Igreja deve ser um exemplo, tornando conhecidos os casos de abuso na sociedade e nas famílias, em vez de tentar escondê-los para proteger sua imagem institucional.7 A erradicação da violência de gênero perpassa necessariamente o abandono da prerrogativa do domínio do homem sobre a mulher e de todas as doutrinas e teologias baseadas em prerrogativas patriarcais.¹

Para que as igrejas se tornem verdadeiramente seguras, elas precisam passar por um processo corajoso de autoexame crítico, reconhecendo sua própria cumplicidade histórica e contemporânea na perpetuação da violência de gênero, seja por ação ou omissão.¹ Isso pode envolver um doloroso, mas necessário, processo de arrependimento institucional, que vá além do "pedir perdão" individual 7 para uma mudança profunda na cultura organizacional e nas estruturas de poder. Sem um reconhecimento honesto das falhas passadas e presentes – desde interpretações teológicas problemáticas até o silenciamento de vítimas – qualquer esforço de reforma será superficial. A verdadeira transformação exige humildade institucional, a disposição para ouvir as vozes das vítimas e das teólogas críticas, e um compromisso inabalável com a justiça. As estratégias das igrejas devem mudar, e o sofrimento dessas mulheres não pode mais ser justificado com profecias bíblicas ou apelos à manutenção de uma ordem injusta.¹


6. Conclusão: Reconstruindo a Fé, Restaurando Vidas


A jornada através da intersecção entre religião e violência doméstica revela um panorama complexo, marcado pela "perturbadora ambiguidade" da fé.¹ Constata-se que o impacto da religião na vida de mulheres abusadas não é monolítico; ao contrário, é um campo dinâmico de disputa interpretativa, de poder e de vivência espiritual. Se, por um lado, interpretações literais e patriarcais de textos sagrados, a sacralização do sofrimento e uma compreensão distorcida do perdão podem acorrentar mulheres a ciclos de violência, por outro, a mesma fé pode ser fonte de resiliência, empoderamento e um chamado profético à justiça.

A transformação necessária para que as comunidades de fé se tornem espaços de cura e libertação, e não de conivência com a opressão, é um desafio urgente. Essa mudança não é apenas para o benefício das mulheres que sofrem abuso, mas para a própria integridade e relevância moral da fé religiosa na sociedade contemporânea. Uma religião que tolera, justifica ou se omite diante da violência contra a mulher perde sua credibilidade e trai sua vocação mais profunda de ser um reflexo do amor, da justiça e da compaixão divinas.

Portanto, as comunidades de fé são conclamadas a um posicionamento ativo e inequívoco contra a violência doméstica. Isso implica:

  • Abandonar teologias opressoras: Rejeitar corajosamente interpretações que inferiorizam as mulheres, justificam a submissão cega ou sacralizam o sofrimento.

  • Adotar práticas libertadoras: Promover uma hermenêutica da suspeita crítica em relação a discursos religiosos misóginos e uma hermenêutica da proclamação que resgate textos, tradições e figuras que afirmam a plena dignidade, igualdade e agência das mulheres.

  • Investir em formação e responsabilização: Capacitar lideranças para um acolhimento sensível e eficaz, e implementar protocolos claros que priorizem a segurança e a justiça para as vítimas.

  • Promover a igualdade de gênero: Educar ativamente para relações baseadas no respeito mútuo, na parceria e na partilha de poder, desconstruindo o modelo patriarcal de família e de sociedade.

Às mulheres que vivenciam o abuso em contextos onde a fé é usada para justificar sua dor, é preciso afirmar que uma fé libertadora é não apenas possível, mas um direito. A busca por segurança, justiça e dignidade não é incompatível com uma espiritualidade profunda; pelo contrário, pode ser sua expressão mais autêntica e corajosa. A luta contra a violência doméstica no seio das tradições religiosas é, em última análise, uma luta pela alma da própria religião – para que ela seja verdadeiramente um caminho de vida abundante para todas as pessoas, e não um espelho das estruturas de poder humanas, falhas e opressivas. A reconstrução da fé, para que seja genuinamente restauradora de vidas, passa, inevitavelmente, pelo compromisso radical com a justiça de gênero e pelo fim de toda forma de violência contra a mulher.


Referências citadas

  1. UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR ... - Univates, acessado em junho 12, 2025, https://www.univates.br/bdu/bitstream/10737/2794/1/2019Sandra%20ElianePinheirodeLima.pdf

  2. A Bíblia manda a mulher ser submissa ao homem? - BBC News Brasil, acessado em junho 12, 2025, https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2ek9319pmro

  3. Opressão às mulheres em nome do sagrado. Um ... - periodicos - ufpb, acessado em junho 12, 2025, https://periodicos.ufpb.br/index.php/religare/article/download/63346/37384/197571

  4. A religião frente à violência doméstica: a percepção das mulheres evangélicas atendidas no Centro de Referência de Atendimento à Mulher - Cram em Itabuna - Ba - Repositório Institucional da UFBA, acessado em junho 12, 2025, https://repositorio.ufba.br/handle/ri/39072

  5. “Dá para entender porque ele fez isso”: feminicídios e famílias evangélicas na (des)proteção de mulheres, acessado em junho 12, 2025, https://atheneadigital.net/article/view/v25-n1-nunes-souza/2489

  6. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E OS DESAFIOS DO ... - Unicesumar, acessado em junho 12, 2025, https://rdu.unicesumar.edu.br/bitstream/123456789/870/1/IARA%20MARIA%20NOGUEIRA%20DA%20ROSA.pdf

  7. “Não basta pedir perdão”, diz Papa na mensagem de vídeo sobre ..., acessado em junho 12, 2025, https://www.cnbb.org.br/nao-basta-pedir-perdao-diz-papa-na-mensagem-de-video-sobre-as-vitimas-de-abuso/

  8. O Poder de Cura do Perdão, acessado em junho 12, 2025, https://www.churchofjesuschrist.org/study/manual/marriage-and-family-relations-instructors-manual/part-a-strengthening-marriages/lesson-7-the-healing-power-of-forgiveness?lang=por

  9. acessado em dezembro 31, 1969, https.churchofjesuschrist.org/study/manual/marriage-and-family-relations-instructors-manual/part-a-strengthening-marriages/lesson-7-the-healing-power-of-forgiveness?lang=por

  10. A relação entre religião e violência contra as mulheres - Agência Patrícia Galvão, acessado em junho 12, 2025, https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/a-relacao-entre-religiao-e-violencia-contra-as-mulheres/

  11. Interpretação Bíblica: raízes patriarcais e leituras feministas - Redalyc, acessado em junho 12, 2025, https://www.redalyc.org/journal/3130/313058154018/html/

  12. Coletivos de mulheres negras evangélicas e a disputa pelo espaço público da religião, acessado em junho 12, 2025, https://jornal.usp.br/artigos/coletivos-de-mulheres-negras-evangelicas-e-a-disputa-pelo-espaco-publico-da-religiao/

  13. UM SÉCULO DEPOIS E A PERMANÊNCIA DOS DISCURSOS: EVANGÉLICAS PELA IGUALDADE DE GÊNERO E O JORNAL BATISTA Marcela Prenda Teixe - Revistas PUC-SP, acessado em junho 12, 2025, https://revistas.pucsp.br/index.php/nures/article/download/42861/28543/121844

  14. Evangélicas pela Igualdade de Gênero - WiConnect, acessado em junho 12, 2025, https://wiconnect.iadb.org/en/osc/evangelicas-pela-igualdade-de-genero/

  15. en.wikipedia.org, acessado em junho 12, 2025, https://en.wikipedia.org/wiki/Catholics_for_Choice

  16. Feminismo Estratégico: Análise das Publicações das Católicas pelo Direito de Decidir, acessado em junho 12, 2025, https://www.scielo.br/j/mediacoes/a/WFHr8YVsbYrTKgFk5NQkTst/

  17. A centralidade transgressora das mulheres nas comunidades de terreiro - SciELO México, acessado em junho 12, 2025, https://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1665-85742023000200185&lang=pt

  18. “Arreda, Homem, que aí Vem Mulher”: Gênero e ... - SciELO, acessado em junho 12, 2025, https://www.scielo.br/j/osoc/a/KLPX96wNhDXCN8ndP5KkVTN/?format=pdf&lang=pt

  19. Igrejas têm papel na superação da violência contra a mulher, diz ..., acessado em junho 12, 2025, https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/11/26/igrejas-tem-papel-na-superacao-da-violencia-contra-a-mulher-diz-pastora

  20. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER NA PERSPECTIVA DAS LIDERANÇAS EVANGÉLICAS: RE- VISITANDO AS LITERATURAS - PORTAL DE PERIÓDICOS DA PUCPR, acessado em junho 12, 2025, https://periodicos.pucpr.br/cadernoteologico/article/download/30791/26621/74191

  21. A IGREJA E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA AS MULHERES - Portal de Anais da Faculdades EST, acessado em junho 12, 2025, http://anais.est.edu.br/index.php/congresso/article/viewFile/221/197

  22. Enfrentando a violência doméstica e familiar contra a mulher - Portal Gov.br, acessado em junho 12, 2025, https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/maio/cartilha-auxilia-mulheres-no-enfrentamento-a-violencia/Cartilhaenfrentamento_QRCODE1.pdf

  23. Violência contra a mulher e as práticas institucionais - Ipea, acessado em junho 12, 2025, https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1378-mjviolcontramulher52.pdf

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