A Gênese do Comportamento Homicida: Uma Análise Biopsicossocial
- Petter Jones
- 3 de jul.
- 27 min de leitura
A Gênese do Comportamento Homicida: Uma Análise Biopsicossocial
Resumo
O comportamento homicida representa a mais severa transgressão contra a vida humana e um desafio perene para a ciência, a justiça e a sociedade. A questão fundamental sobre como um ser humano se torna um assassino tem sido historicamente abordada através de lentes monocausais, atribuindo a etiologia da violência a fatores sociais, patologias comportamentais ou predisposições congênitas de forma isolada. Este artigo contesta essa visão fragmentada, propondo, em seu lugar, uma análise integradora fundamentada no modelo biopsicossocial. Argumenta-se que o ato de matar não é o produto de uma única causa, mas o resultado final de uma complexa e dinâmica cascata de interações entre vulnerabilidades biológicas (genéticas e neuroanatômicas), traumas e trajetórias de desenvolvimento psicológico adverso (abuso, negligência, psicopatologia) e estressores do macrocontexto social (desigualdade, exclusão, subculturas de violência). A partir de uma revisão exaustiva da literatura em criminologia, sociologia, psicologia, psiquiatria forense, neurociência e genética, este trabalho demonstra como esses fatores se interconectam. O paradigma da interação gene-ambiente (GxE), exemplificado pela relação entre o polimorfismo do gene MAOA e maus-tratos na infância, é apresentado como um mecanismo central que elucida como as predisposições genéticas são ativadas e moduladas por experiências ambientais. A neurobiologia do trauma é explorada como a ponte que materializa as experiências psicossociais em alterações funcionais e estruturais no cérebro. Conclui-se que a compreensão da gênese do homicídio exige uma mudança de um paradigma de causalidade linear para um de trajetórias de risco multifatoriais. Tal compreensão não visa a eximir a responsabilidade, mas a fundamentar políticas de prevenção mais eficazes e humanas, focadas na mitigação dos fatores de risco em cada nível de análise – desde a redução da desigualdade social e a proteção à infância até intervenções terapêuticas e de reabilitação baseadas em evidências.
Palavras-chave: Comportamento Homicida; Criminologia; Modelo Biopsicossocial; Fatores de Risco; Violência.
1. INTRODUÇÃO
1.1 Delimitação do Fenômeno
Desde os primórdios da civilização, o ato de um ser humano tirar a vida de outro – o homicídio – se posta como a transgressão fundamental contra a ordem social e a santidade da existência. O filósofo Michel de Montaigne, já em 1580, expressava sua perplexidade diante da crueldade humana, observando atos de violência cometidos "pelo simples prazer de matar". Essa constatação, que ecoa com perturbadora relevância nos dias atuais, sublinha a persistência e a universalidade do homicídio como um fenômeno que simultaneamente aterroriza e intriga a humanidade. A sua análise, portanto, não pode se restringir à sua manifestação final, o ato consumado, mas deve mergulhar nas profundezas de suas origens, buscando responder à inquietante questão: como um ser humano se torna capaz de cometer o ato último de violência?
A definição legal do homicídio, embora varie em nuances entre diferentes ordenamentos jurídicos, converge em sua essência: "Quem matar outra pessoa...". Esta formulação basilar, presente no Código Penal Brasileiro em seu artigo 121 , serve como ponto de partida para um complexo sistema de tipificações que buscam aferir a intencionalidade (dolo) ou a ausência dela (culpa), bem como as circunstâncias que podem agravar ou atenuar a pena. Contudo, o arcabouço jurídico, por mais essencial que seja para a regulação social e a aplicação da justiça, opera no domínio da consequência. Ele classifica, julga e pune o ato, mas não explica a sua gênese. Para compreender o porquê do homicídio, é necessário transcender o Direito Penal e adentrar os domínios da criminologia, da psicologia, da sociologia e das neurociências.
1.2 Contextualização Jurídica e Criminológica
O Direito Penal brasileiro estabelece uma distinção crucial entre o homicídio doloso, quando há a intenção de matar, e o culposo, resultante de negligência, imprudência ou imperícia. Dentro da categoria dolosa, existem ainda as qualificadoras, que refletem uma maior reprovabilidade da conduta, como o motivo torpe, o meio cruel ou o uso de recurso que dificulte a defesa da vítima. Essa estrutura legal, ao focar na intencionalidade e nas circunstâncias, implicitamente reconhece que o ato de matar é mediado por processos mentais e contextuais complexos.
É precisamente neste ponto que a psicologia forense e a criminologia iniciam sua investigação. Estas disciplinas buscam desvendar as motivações, os padrões de comportamento e os perfis psicológicos que subjazem ao ato homicida. Elas se aprofundam na mente do agressor, questionando o que o diferencia de outros indivíduos e quais fatores o levaram a cruzar o limiar da violência letal. No caso de crimes em série, por exemplo, a psicologia investigativa analisa o modus operandi e a "assinatura" do criminoso, buscando entender as fantasias e compulsões que o impulsionam. O objetivo não é apenas auxiliar na resolução de crimes, mas fundamentalmente compreender a etiologia do comportamento violento.
1.3 Apresentação da Problemática e da Tese Central
A busca por uma explicação para o comportamento homicida frequentemente resulta em respostas simplificadas e reducionistas. A pergunta "Como um ser humano se torna um assassino?" é muitas vezes enquadrada em uma falsa dicotomia, sugerindo que a resposta reside exclusivamente em uma de três esferas: um problema social (fruto da pobreza, da exclusão e da desigualdade), um problema comportamental (decorrente de traumas, abusos e psicopatologias) ou um problema congênito (determinado pela genética e pela estrutura cerebral). Essa fragmentação, refletida na própria formulação da questão, espelha uma dificuldade cultural e científica em apreender a complexidade do comportamento humano.
Este artigo argumenta que tais explicações monocausais são, por definição, inadequadas e falhas. A tese central aqui defendida é que o comportamento homicida não emerge de um único fator, mas de uma complexa e dinâmica interação de vulnerabilidades e fatores de risco que se desdobram ao longo da vida do indivíduo, abrangendo múltiplas dimensões. Para articular essa visão, adota-se o modelo biopsicossocial como a principal lente teórica. Este modelo postula que a compreensão integral do desenvolvimento da personalidade e do comportamento humano, incluindo suas manifestações mais extremas e violentas, exige a consideração da interação contínua entre fatores biológicos (genéticos, neuroquímicos, anatômicos), psicológicos (trajetórias de desenvolvimento, traços de personalidade, saúde mental) e sociais (contexto socioeconômico, influências culturais, relações interpessoais).
O verdadeiro desafio acadêmico, portanto, não é eleger uma dessas dimensões como a "causa" principal, mas sim construir pontes teóricas e empíricas que demonstrem suas interconexões. O modelo biopsicossocial não propõe uma mera "soma das partes", mas um sistema dinâmico de feedback, no qual cada dimensão influencia e é influenciada pelas outras. O objetivo deste artigo é mapear essas interconexões, demonstrando, por exemplo, como uma vulnerabilidade congênita (como uma variante genética) pode permanecer latente e irrelevante sem a presença de um estressor social (como um ambiente familiar abusivo), e como ambos se manifestam através de um desfecho comportamental (como a falta de controle de impulsos). A proposta, em suma, é desconstruir a premissa do "ou/ou" e substituí-la por uma análise compreensiva do "como" – como as múltiplas forças biológicas, psicológicas e sociais convergem para criar a trágica trajetória que culmina no ato de matar.
2. A DIMENSÃO SOCIAL: O CALDO DE CULTURA DA VIOLÊNCIA
O comportamento humano, em suas mais variadas formas, não ocorre em um vácuo. Ele é profundamente moldado pelo contexto social, cultural e econômico no qual o indivíduo está inserido. O ato homicida, embora perpetrado por um indivíduo, frequentemente tem suas raízes fincadas em estruturas sociais que geram pressão, ensinam a violência e a normalizam como uma resposta aceitável aos conflitos da vida. A sociologia da criminalidade oferece ferramentas teóricas indispensáveis para compreender este macrocontexto, o verdadeiro "caldo de cultura" onde a violência pode germinar.
2.1 Teorias Sociológicas da Criminalidade
Diversas teorias sociológicas foram desenvolvidas para explicar por que o crime e a violência se concentram em determinados grupos e áreas geográficas. Embora cada uma ofereça uma perspectiva distinta, elas não são mutuamente exclusivas; ao contrário, podem ser compreendidas como complementares, descrevendo diferentes facetas de um mesmo processo de desintegração social que fomenta o comportamento desviante.
A Teoria da Anomia, desenvolvida por Robert Merton, postula que a criminalidade surge de uma dissociação fundamental na estrutura social entre as metas culturais universalmente valorizadas (como o sucesso financeiro e o status) e os meios legítimos e institucionais disponíveis para alcançá-las. Quando os indivíduos, especialmente aqueles em estratos sociais desfavorecidos, internalizam as metas de sucesso, mas encontram as vias legítimas (educação de qualidade, emprego digno) bloqueadas, instala-se um estado de tensão, ou strain. A violência e o crime podem emergir como uma forma de "adaptação inovadora" – o uso de meios ilegítimos para atingir as metas culturalmente prescritas. Nesse sentido, o homicídio pode ser o resultado extremo da frustração e da raiva geradas por um sistema que promete muito, mas oferece pouco.
Enquanto a anomia explica a pressão para o desvio, a Teoria da Associação Diferencial de Edwin Sutherland explica o aprendizado do comportamento criminoso. Segundo esta teoria, a criminalidade não é inata nem inventada pelo indivíduo, mas aprendida através da interação e comunicação dentro de grupos pessoais íntimos. Esse aprendizado inclui não apenas as técnicas para cometer crimes, mas, crucialmente, os motivos, as racionalizações e as atitudes que justificam a violação da lei. Um indivíduo se torna propenso à delinquência quando as "definições favoráveis à violação da lei" superam as "definições desfavoráveis". No contexto do homicídio, isso significa que um jovem pode aprender em seu círculo de pares que a violência é uma forma legítima de resolver disputas, defender a honra ou ganhar respeito.
Quando essas definições favoráveis à violência se tornam a norma dentro de um grupo ou comunidade, pode-se desenvolver o que Marvin Wolfgang e Franco Ferracuti denominaram Teoria da Subcultura da Violência. Esta teoria argumenta que, em certos segmentos da sociedade, a violência não é vista como um comportamento desviante, mas como um componente esperado e valorizado da vida cotidiana. Dentro dessa subcultura, o uso da violência para resolver conflitos não é apenas aceito, mas muitas vezes exigido para manter o status e a masculinidade. Indivíduos que não se conformam a esses padrões violentos podem enfrentar sanções sociais como o ostracismo ou o desdém. Assim, o ato de matar pode se tornar não uma transgressão, mas uma afirmação de pertencimento e adesão às normas do grupo.
2.2 Desigualdade, Pobreza e Exclusão Social
A relação entre condições socioeconômicas e criminalidade é um dos temas mais debatidos na sociologia. Embora a percepção popular frequentemente estabeleça uma ligação direta e simples entre pobreza e violência, a pesquisa acadêmica revela uma dinâmica mais complexa e nuançada. Estudos robustos indicam que não é a pobreza absoluta, mas sim a desigualdade de renda, medida pelo coeficiente de Gini, que se mostra como um preditor mais forte e consistente das taxas de homicídio. A percepção de injustiça e a grande distância entre os mais ricos e os mais pobres geram tensões sociais, frustração e ressentimento, criando um ambiente propício à violência. Quando as pessoas sentem que têm muito a ganhar e pouco a perder, a propensão a assumir riscos, incluindo os criminais, aumenta.
A América Latina serve como um paradoxal e poderoso estudo de caso. Na região, as últimas décadas viram reduções drásticas nos índices de pobreza, com milhões de pessoas superando a linha da pobreza. No entanto, as taxas de homicídio permaneceram as mais altas do mundo, com a região abrigando 8 dos 10 países mais violentos e 40 das 50 cidades mais perigosas globalmente. Este cenário, onde a pobreza diminui enquanto a violência persiste ou aumenta, reforça a tese de que a desigualdade e a exclusão social, e não a pobreza por si só, são os motores da violência letal. O Brasil, em particular, exibe uma das maiores disparidades de renda do mundo, onde 1% da população mais rica acumula quase o mesmo volume de rendimentos que os 50% mais pobres. Análises em nível local demonstram uma forte correlação negativa entre a renda média dos distritos e suas taxas de homicídio, e uma correlação positiva com indicadores de exclusão social, como o abandono escolar por adolescentes. Esse cenário de profunda desigualdade e falta de oportunidades para a juventude cria um terreno fértil para a anomia de Merton, a associação diferencial de Sutherland e o florescimento de subculturas violentas.
2.3 A Influência da Mídia e da Cultura de Violência
Em paralelo às forças estruturais da sociedade, a cultura de massa, veiculada principalmente pela mídia, desempenha um papel significativo na normalização da violência. A questão de se a exposição a conteúdos violentos gera comportamento agressivo tem sido objeto de décadas de pesquisa. Hoje, o consenso científico, baseado em centenas de estudos com metodologias diversas (longitudinais, transversais, de campo e experimentais), aponta para um fato provado: existe uma correlação positiva e causal entre a exposição à violência midiática e o aumento de pensamentos, sentimentos e comportamentos agressivos.
Meta-análises que agregam os resultados de dezenas de milhares de participantes demonstram que mesmo exposições de curta duração à mídia violenta podem levar a efeitos prejudiciais, incluindo a dessensibilização à violência no mundo real, a redução da empatia e do comportamento solidário, e um aumento direto na agressividade. Os mecanismos por trás desse efeito são múltiplos: a modelagem, onde os espectadores aprendem e imitam comportamentos agressivos vistos na tela (uma forma de aprendizagem social em larga escala); a dessensibilização, onde a exposição repetida diminui a resposta emocional negativa à violência, tornando-a mais palatável e aceitável; e a ativação, onde o conteúdo violento pode aumentar a excitação fisiológica e ativar pensamentos e emoções agressivas pré-existentes no indivíduo.
É crucial enfatizar que a mídia não é a única causa da violência. No entanto, ela atua como um poderoso catalisador dentro do ecossistema social. Em um contexto já marcado pela desigualdade e pela exclusão, a constante exposição a narrativas que glorificam a violência ou a apresentam como a única solução para conflitos pode fornecer "scripts" comportamentais que são prontamente adotados por indivíduos vulneráveis, reforçando as normas das subculturas violentas e diminuindo as inibições contra o ato de matar.
Em síntese, a dimensão social constrói o palco para a tragédia do homicídio. A estrutura econômica (desigualdade) gera a pressão psicológica (anomia), que é canalizada através de processos de aprendizagem social (associação diferencial) e solidificada em sistemas de valores alternativos (subculturas). Tudo isso é banhado por uma cultura midiática que, em muitos casos, normaliza e banaliza a agressão, contribuindo para um ambiente onde tirar uma vida pode se tornar uma opção concebível.
3. A DIMENSÃO PSICOLÓGICA: TRAJETÓRIAS DE DESENVOLVIMENTO E MECANISMOS COMPORTAMENTAIS
Se a dimensão social constrói o palco, a dimensão psicológica narra a história do ator. É no desenvolvimento individual, nas experiências formativas da infância e na estruturação da personalidade que os fatores de risco sociais se internalizam e se transformam em vulnerabilidades comportamentais. A trajetória que leva ao homicídio é, em muitos casos, uma trilha pavimentada por dor, trauma e desadaptação psicológica. O "problema comportamental" não é uma falha súbita ou inexplicável, mas a manifestação de um processo de desenvolvimento que foi profundamente interrompido e distorcido.
3.1 O Berço da Violência: Trauma, Abuso e Negligência na Infância
Entre todos os fatores de risco para o comportamento violento na vida adulta, o histórico de maus-tratos na infância é um dos mais robustos, consistentes e devastadores identificados pela pesquisa criminológica e psicológica. Uma esmagadora maioria de indivíduos que cometem crimes violentos, especialmente homicidas em série, relata um passado marcado por abuso físico, sexual, emocional ou negligência severa. Análises de casos de assassinos em série no Brasil e no mundo revelam um padrão assustadoramente comum: uma infância negligenciada, marcada por violência precoce, desestruturação familiar e a ausência de um cuidador estável e protetor. Pesquisas indicam que cerca de 82% dos assassinos em série sofreram alguma forma de abuso ou abandono quando crianças.
É importante ressaltar que nem toda criança abusada se tornará um assassino. No entanto, o abuso cria um terreno fértil para o desenvolvimento de graves problemas psicológicos. A chamada "Tríade de Macdonald" ou "Tríade Terrível" – composta por enurese noturna (urinar na cama) em idade avançada, crueldade com animais e destruição de propriedade (especialmente piromania) – é frequentemente citada como um conjunto de sinais de alerta precoces, indicando um profundo sofrimento emocional e problemas de desenvolvimento em crianças que podem, mais tarde, escalar para a violência interpessoal.
O impacto do abuso é multifacetado. Primeiramente, ele causa um dano psicológico direto, podendo levar ao desenvolvimento de transtornos como depressão, ansiedade e, crucialmente, o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Em segundo lugar, funciona como um poderoso mecanismo de modelagem agressiva: a criança aprende, através da observação e da experiência direta, que a violência é uma forma de exercer poder e controle sobre os outros. Em terceiro lugar, pode desencadear um mecanismo psicanalítico de repetição compulsiva, no qual a vítima, para lidar com o trauma insuportável, se identifica com o agressor, passando a atuar o papel daquele que inflige a dor, em uma tentativa desesperada de transformar a passividade em atividade e a impotência em onipotência.
3.2 A Mente do Assassino: Psicopatologia e Traços de Personalidade
No cerne da psicologia do homicida, encontramos frequentemente construtos psicopatológicos específicos que explicam a capacidade de cometer atos de violência extrema sem o freio moral que restringe a maioria das pessoas. O mais proeminente desses construtos é a psicopatia. Embora não seja um diagnóstico formalmente reconhecido no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), a psicopatia é um conceito clínico e forense bem estabelecido, caracterizado por um conjunto de traços afetivos, interpessoais e comportamentais, incluindo uma profunda falta de empatia e remorso, charme superficial, grandiosidade, manipulação, egocentrismo, impulsividade e um estilo de vida antissocial. O diagnóstico oficial mais próximo no DSM-5 é o Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS), que se sobrepõe a muitas das características comportamentais da psicopatia, mas dá menos ênfase aos traços afetivos e interpessoais.
Estudos com populações carcerárias consistentemente demonstram uma prevalência muito maior de psicopatia e TPAS entre criminosos violentos do que na população geral, que é estimada entre 0,5% e 3%. Uma pesquisa específica com 45 detentos cumprindo pena por homicídio no Brasil encontrou que 15,6% podiam ser classificados como psicopatas com base na escala PCL-R (Psychopathy Checklist-Revised), uma taxa significativamente elevada. Este mesmo estudo observou uma tendência de correlação entre escores mais altos de psicopatia e um maior número de qualificadoras no crime de homicídio, sugerindo que os traços psicopáticos estão associados a uma violência mais planejada, cruel ou controladora.
O traço fundamental que permite a violência psicopática é o déficit de empatia. A empatia, a capacidade de compreender e compartilhar os estados emocionais de outra pessoa, funciona como um poderoso inibidor da agressão. A sua ausência ou deficiência severa, como observada em psicopatas, remove essa barreira. O sofrimento da vítima simplesmente não ressoa emocionalmente no agressor, tornando-a um mero objeto para a satisfação de suas necessidades ou fantasias. Combinada com falhas no controle emocional e inibitório – a incapacidade de regular a raiva e os impulsos –, essa falta de empatia cria um perfil de alto risco para a agressão reativa e instrumental.
3.3 O Legado Psiquiátrico do Trauma: Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT)
Enquanto a psicopatia é frequentemente caracterizada por uma frieza emocional e falta de reatividade, outra via psicológica para a violência pode ser pavimentada pela reatividade excessiva. O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) é uma consequência psiquiátrica debilitante da exposição a eventos traumáticos, incluindo, proeminentemente, o abuso infantil e outras formas de violência. O TEPT é definido por um conjunto de sintomas que incluem a revivescência do trauma (flashbacks, pesadelos), a evitação de estímulos associados ao evento e, crucialmente para a discussão da violência, um estado de hipervigilância e hiperexcitabilidade.
O indivíduo com TEPT vive em um estado de alerta constante, como se a ameaça original nunca tivesse cessado. Seu sistema nervoso está cronicamente ativado, pronto para lutar ou fugir ao menor sinal de perigo, real ou percebido. Essa condição de hiper-reatividade aumenta drasticamente o risco de respostas agressivas e violentas. O indivíduo pode interpretar mal sinais sociais neutros como ameaçadores e reagir com uma força desproporcional, em um ato de defesa preemptiva. Estudos confirmam uma forte associação entre o diagnóstico de TEPT e um risco aumentado tanto de ser vítima quanto de ser perpetrador de violência interpessoal.
Dessa forma, o trauma infantil pode levar a pelo menos duas trajetórias distintas de risco para a violência. Uma é a via da psicopatia, possivelmente um "desligamento" emocional defensivo contra a dor, resultando em um indivíduo frio, calculista e sem empatia. A outra é a via do TEPT, uma falha nesse desligamento, que resulta em um indivíduo cronicamente assustado, reativo e hipervigilante. Ambas as trajetórias, embora psicologicamente distintas, podem convergir para o mesmo desfecho trágico: o ato de matar. Elas representam diferentes formas de desadaptação a um mesmo solo tóxico de abuso e negligência, conectando de forma indelével a experiência vivida (psicologia) à função cerebral e ao comportamento (biologia).
4. A DIMENSÃO BIOLÓGICA: PREDISPOSIÇÕES E CORRELATOS NEURAIS
A investigação sobre as bases biológicas do comportamento violento representa uma das fronteiras mais fascinantes e controversas da criminologia moderna. Longe de ressuscitar noções deterministas de um "criminoso nato" , a pesquisa contemporânea em neurociência e genética busca identificar vulnerabilidades e predisposições que, em interação com fatores ambientais, podem aumentar o risco de um indivíduo desenvolver padrões de comportamento agressivo e homicida. As evidências não apontam para um "gene do crime" ou uma "área do assassinato" no cérebro, mas sim para uma complexa rede de fatores neurobiológicos que podem comprometer a capacidade de controle de impulsos, regulação emocional e empatia.
4.1 A Arquitetura Cerebral da Violência
Graças a tecnologias de neuroimagem como a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) e a Ressonância Magnética funcional e estrutural (RMf e RM), os pesquisadores têm sido capazes de olhar para dentro do cérebro de indivíduos violentos e identificar padrões consistentes de disfunção. Esses achados concentram-se principalmente em uma rede de estruturas responsáveis pela tomada de decisão, controle emocional e comportamento social.
O Córtex Pré-Frontal (CPF) é talvez a região mais consistentemente implicada. Sendo a última parte do cérebro a amadurecer completamente, por vezes apenas após os 20 anos de idade, o CPF é o centro executivo do cérebro, responsável por funções superiores como planejamento, tomada de decisões complexas, julgamento moral e, crucialmente, o controle inibitório – a capacidade de suprimir impulsos inadequados. Inúmeros estudos com populações violentas, incluindo homicidas e psicopatas, revelaram uma atividade metabólica reduzida (hipometabolismo) e, em alguns casos, uma redução no volume de matéria cinzenta nesta região. Essa disfunção no "freio" do cérebro pode explicar a impulsividade, a má tomada de decisão e a incapacidade de prever as consequências negativas de seus atos que caracterizam muitos criminosos violentos.
Em estreita conexão com o CPF está o sistema límbico, o centro emocional do cérebro. A amígdala, uma estrutura chave para o processamento do medo, da raiva e de outras emoções básicas, mostra padrões de atividade distintos dependendo do tipo de agressor. Em psicopatas, que exibem uma violência fria e instrumental, a amígdala tende a ser estruturalmente menor e hipoativa, o que pode explicar sua notória falta de medo, empatia e resposta emocional ao sofrimento alheio. Em contraste, em indivíduos com violência reativa e impulsiva, muitas vezes associada a um histórico de trauma e TEPT, a amígdala pode ser hiperativa, levando a uma percepção exagerada de ameaças. Outras estruturas límbicas, como o hipocampo, envolvido na memória e na regulação do estresse, também apresentam volume reduzido e disfunção em populações violentas.
A violência, portanto, parece não residir em uma única área cerebral, mas em uma conectividade anormal entre as regiões. O problema fundamental pode estar nas "estradas" que ligam o CPF (o centro de controle) ao sistema límbico (o centro emocional). Uma comunicação deficiente entre essas áreas significa que as emoções brutas geradas pela amígdala não são adequadamente moduladas e controladas pelo CPF, resultando em explosões de agressividade ou em decisões tomadas sem o devido peso emocional e moral.
4.2 A Química Cerebral da Agressão
A comunicação entre os neurônios é mediada por substâncias químicas chamadas neurotransmissores. Desequilíbrios nesses sistemas neuroquímicos têm sido fortemente associados ao comportamento violento.
A serotonina é o neurotransmissor mais estudado no contexto da agressão. Ela desempenha um papel fundamental na regulação do humor, do sono e, mais importante, no controle dos impulsos. Uma vasta literatura científica demonstra que níveis cronicamente baixos de serotonina ou uma disfunção em seus receptores cerebrais estão associados a um aumento da impulsividade, irritabilidade e agressividade. Essa "hipótese serotoninérgica da agressão" sugere que a serotonina atua como um inibidor comportamental; sua deficiência, portanto, libera comportamentos agressivos que de outra forma seriam contidos.
A dopamina, por sua vez, está no centro do sistema de recompensa e motivação do cérebro. Ela é liberada em resposta a experiências prazerosas e nos motiva a buscar essas experiências novamente. Embora sua relação com a agressão seja mais complexa do que a da serotonina, a desregulação dopaminérgica tem sido implicada em comportamentos de busca de risco e sensações, que podem incluir a violência. A interação entre os sistemas de serotonina e dopamina é particularmente crucial: a serotonina ajuda a modular e controlar os impulsos de busca de recompensa impulsionados pela dopamina. Um desequilíbrio – baixa serotonina e alta reatividade dopaminérgica – pode criar um perfil de alto risco para a agressão.
4.3 A Predisposição Genética: O "Gene Guerreiro" e Outros Fatores
A questão de se existe uma base genética para a violência tem sido investigada intensamente. A resposta da ciência moderna é um "sim" qualificado. Não existem "genes do crime" que determinem o destino de uma pessoa, mas existem variantes genéticas (polimorfismos) que podem conferir uma maior predisposição ou vulnerabilidade ao comportamento agressivo.
O exemplo mais emblemático e bem estudado é o gene que codifica a enzima Monoamina Oxidase A (MAOA), apelidado na mídia de "gene guerreiro". A função da enzima MAOA é metabolizar (ou "limpar") neurotransmissores-chave do cérebro após sua liberação, incluindo a serotonina, a dopamina e a noradrenalina. Existem diferentes variantes deste gene na população. Variantes que levam a uma baixa produção da enzima (conhecidas como MAOA-L, de low activity) resultam em uma "limpeza" menos eficiente desses neurotransmissores, levando a um excesso deles no cérebro. Este estado neuroquímico tem sido consistentemente associado em estudos a uma maior reatividade à provocação e a um aumento do risco de comportamento agressivo e antissocial.
Outros genes, como o CDH13, que está envolvido na conectividade neuronal, também foram associados a um risco aumentado de violência extrema. É fundamental, no entanto, contextualizar essas descobertas. Essas variantes genéticas de risco são relativamente comuns na população geral e, por si sós, têm pouco ou nenhum poder preditivo. Elas não causam o assassinato. O que elas fazem é criar uma vulnerabilidade neurobiológica latente. Um indivíduo com uma variante MAOA-L pode ter, desde o nascimento, um sistema de regulação de impulsos ligeiramente menos robusto. Em um ambiente favorável, essa vulnerabilidade pode nunca se manifestar. Contudo, quando exposto a estressores ambientais severos, como o abuso infantil, sua capacidade de lidar com a frustração e a raiva é significativamente menor do que a de alguém sem essa predisposição genética. A biologia, portanto, não define o destino, mas pode definir o grau de vulnerabilidade aos insultos do ambiente.
5. SÍNTESE INTEGRATIVA: O MODELO DIÁTESE-ESTRESSE E A INTERAÇÃO GENE-AMBIENTE (GxE)
As seções anteriores delinearam as dimensões social, psicológica e biológica do comportamento homicida como entidades separadas para fins de clareza analítica. No entanto, a realidade do desenvolvimento humano não é compartimentada. Esses fatores não operam em paralelo; eles interagem, se sobrepõem e se influenciam mutuamente em uma complexa dança ao longo do tempo. Esta seção visa a tecer essas diferentes linhas de evidência em uma tapeçaria coesa, demonstrando que a gênese do homicídio é melhor compreendida não como um produto de "natureza versus criação", mas como um resultado da interação entre "natureza e criação".
5.1 Para Além de Natureza vs. Criação: O Modelo Diátese-Estresse
A superação da falsa dicotomia entre biologia e ambiente é elegantemente alcançada pelo Modelo Diátese-Estresse. Este modelo, originalmente desenvolvido para explicar a esquizofrenia e outros transtornos mentais, postula que a psicopatologia emerge da confluência de dois fatores: uma diátese, que é uma vulnerabilidade ou predisposição pré-existente (geralmente de natureza biológica ou genética), e um estresse, que consiste em eventos ou condições ambientais adversas que atuam como gatilhos.
Aplicado ao comportamento homicida, a "diátese" pode ser a vulnerabilidade neurobiológica discutida na seção anterior: uma variante genética de risco como a MAOA-L, uma disfunção congênita no córtex pré-frontal ou um sistema serotoninérgico inerentemente menos eficiente. O "estresse" engloba os fatores psicossociais adversos detalhados nas seções 2 e 3: abuso e negligência na infância, exposição à violência comunitária, exclusão social, trauma, entre outros. Segundo este modelo, um indivíduo com alta vulnerabilidade (diátese) pode desenvolver um comportamento violento mesmo com um nível relativamente baixo de estresse ambiental. Inversamente, um indivíduo com baixa vulnerabilidade pode suportar altos níveis de estresse sem desenvolver patologias graves. O risco mais elevado de violência letal, contudo, ocorre em indivíduos que possuem uma combinação tóxica de alta vulnerabilidade biológica e exposição a estressores ambientais severos e crônicos.
5.2 O Paradigma da Interação Gene-Ambiente (GxE)
O Modelo Diátese-Estresse encontrou sua validação empírica mais poderosa no paradigma da Interação Gene-Ambiente (GxE). Este campo de pesquisa move-se para além da simples identificação de genes ou fatores ambientais de risco, investigando como os efeitos de um são modulados pela presença do outro. É aqui que a síntese das dimensões biológica e psicossocial se torna mais clara e irrefutável.
O estudo seminal de Caspi e colegas (2002) é o exemplo paradigmático. Ao acompanhar um grande grupo de homens desde o nascimento, os pesquisadores demonstraram que a variante de baixa atividade do gene MAOA (a diátese genética) não estava, por si só, associada a um aumento do comportamento antissocial. Da mesma forma, sofrer maus-tratos na infância (o estresse ambiental) aumentava o risco de violência, mas não para todos. A descoberta crucial foi a interação: a combinação da variante MAOA-L e de um histórico de maus-tratos na infância aumentava exponencialmente o risco de desenvolver transtorno de conduta, disposições violentas e condenações por crimes violentos na vida adulta. Em outras palavras, o gene modulava a forma como os indivíduos respondiam ao ambiente. Aqueles com a variante de alta atividade do gene MAOA pareciam ter um fator de proteção contra os efeitos deletérios do abuso.
Este modelo de interação GxE representa a prova empírica mais contundente contra o determinismo genético puro. Ele demonstra que "a genética carrega a arma, mas o ambiente puxa o gatilho". A predisposição biológica não é um destino, mas uma sensibilidade diferencial ao ambiente. Outros estudos replicaram essa lógica para diferentes genes e desfechos, como a interação entre polimorfismos no gene transportador de serotonina (5-HTTLPR), trauma e o risco de desenvolver TEPT. A força da expressão genética está, portanto, intrinsecamente ligada aos efeitos do ambiente.
5.3 A Neurobiologia do Trauma como Ponte
Se a interação GxE mostra que a biologia e o ambiente interagem, a neurobiologia do trauma explica como essa interação ocorre em um nível físico e celular. As experiências psicossociais, especialmente os traumas severos e precoces, não são eventos etéreos que deixam apenas cicatrizes psicológicas; elas se inscrevem no corpo, alterando a estrutura e a função do cérebro de maneira duradoura.
O trauma infantil desencadeia uma cascata de eventos neurobiológicos. O estresse crônico pode levar a uma desregulação permanente do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA), o principal sistema de resposta ao estresse do corpo. Mais do que isso, o trauma pode induzir alterações epigenéticas, que são modificações químicas no DNA que não alteram a sequência genética em si, mas regulam a expressão dos genes – "ligando" ou "desligando" certos genes em resposta a sinais ambientais. Assim, o abuso (um fator social) pode literalmente alterar a forma como os genes de um indivíduo (a biologia) são expressos ao longo da vida.
Além disso, a exposição repetida ao estresse traumático na infância, um período crítico de desenvolvimento cerebral, pode causar mudanças estruturais permanentes. Estudos de neuroimagem em adultos com histórico de abuso e TEPT encontraram, por exemplo, retração de dendritos (as ramificações dos neurônios) no hipocampo (prejudicando a memória e a regulação do estresse) e, inversamente, um crescimento e hiperexcitabilidade na amígdala (aumentando a reatividade ao medo e à ameaça).
Dessa forma, a neurobiologia do trauma serve como a ponte definitiva entre as dimensões. O "social" e o "psicológico" (abuso, negligência, medo) se tornam "biológicos" (alterações na expressão gênica, na estrutura e na química cerebral). Um fator de risco social (violência doméstica) leva a um transtorno psicológico (TEPT), que se manifesta como um padrão neurobiológico específico (hipoatividade no CPF e hiperatividade na amígdala). A gênese do homicídio é, portanto, um processo de cascata: uma vulnerabilidade biológica inicial é ativada e exacerbada por um ambiente social tóxico, que por sua vez esculpe uma psique e um cérebro mal-adaptados, resultando em um indivíduo com baixo controle inibitório e alta reatividade à ameaça. Para esse indivíduo, em uma situação de conflito, frustração ou provocação, a violência letal torna-se uma resposta muito mais provável e cognitivamente acessível.
6. IMPLICAÇÕES E DISCUSSÃO
A compreensão do comportamento homicida como um fenômeno biopsicossocial complexo, resultante de uma longa cascata de interações de risco, tem profundas implicações que se estendem desde debates filosóficos fundamentais até a formulação de políticas públicas práticas. Reconhecer essa complexidade nos força a reavaliar noções tradicionais de culpa e responsabilidade e, mais importante, a repensar radicalmente as estratégias de prevenção da violência.
6.1 O Dilema Filosófico-Jurídico: Livre-Arbítrio vs. Determinismo
O sistema de justiça criminal, em grande parte do mundo ocidental, está alicerçado na doutrina do livre-arbítrio. Esta premissa, com raízes teológicas e filosóficas profundas, sustenta que os seres humanos são agentes morais livres, capazes de escolher entre o certo e o errado. Consequentemente, quando um indivíduo comete um crime, ele o faz porque escolheu fazê-lo, podendo ter agido de outra forma. É essa capacidade de escolha que fundamenta o conceito de culpabilidade e justifica a imposição de uma pena como forma de retribuição – um castigo merecido pelo mal cometido.
No entanto, as evidências acumuladas pela neurociência, genética e psicologia do desenvolvimento desafiam frontalmente essa noção simplista de livre-arbítrio. Se o comportamento de um indivíduo é influenciado por uma disfunção no córtex pré-frontal que compromete seu controle inibitório , por uma variante genética que aumenta sua reatividade à provocação , e por um histórico de abuso severo que moldou seu cérebro para perceber ameaças em toda parte , até que ponto sua "escolha" de reagir violentamente foi verdadeiramente livre? O determinismo, a corrente de pensamento que se opõe ao livre-arbítrio, argumentaria que as ações humanas são o resultado inevitável de uma cadeia de causas e efeitos, sejam eles biológicos, psicológicos ou sociais.
Este embate não implica necessariamente a abolição da responsabilidade penal. Poucos argumentariam que um homicida não deva ser afastado da sociedade. O que a perspectiva biopsicossocial faz é complexificar o conceito de responsabilidade e questionar a primazia da retribuição como justificativa para a punição. Se a capacidade de escolha de um infrator foi severamente comprometida por fatores fora de seu controle, a ideia de puni-lo puramente por vingança perde parte de sua força moral. A discussão, então, se desloca de uma ênfase na culpa passada para uma ênfase na periculosidade futura e na necessidade de intervenção. O foco muda de "o que ele merece?" para "o que é necessário para proteger a sociedade e, se possível, reabilitar o indivíduo?". Isso abre caminho para um sistema de justiça criminal potencialmente mais humano e eficiente, que valoriza menos a prisão como um fim em si mesma e mais o tratamento, a reabilitação e a neutralização do perigo com base em avaliações de risco científicas.
6.2 Rumo a uma Prevenção Baseada em Evidências
A implicação mais poderosa e urgente do modelo biopsicossocial é a necessidade de uma mudança de paradigma nas políticas de segurança pública – de um modelo reativo e repressivo para um modelo proativo e preventivo. Se o comportamento homicida é o ponto culminante de uma longa trajetória de risco que começa na concepção e se desenrola ao longo da infância e adolescência, então as estratégias que focam apenas na repressão policial e no encarceramento em massa são, por definição, insuficientes e tardias. Elas lidam com o sintoma, não com a doença.
Uma abordagem de prevenção da violência verdadeiramente eficaz, baseada em evidências científicas, deve ser multidisciplinar, multiagencial e estruturada para intervir nos pontos-chave da cascata de risco. Isso implica uma estratégia em múltiplos níveis:
Prevenção Primária (Nível Social): Este nível visa a impedir o surgimento dos fatores de risco na população em geral. As intervenções incluem políticas macroeconômicas de redução da desigualdade de renda; programas de fortalecimento familiar que oferecem apoio a pais em situação de vulnerabilidade; campanhas de saúde pública e legislação rigorosa para combater a violência doméstica e o abuso infantil; e a criação de ambientes urbanos seguros e com oportunidades de educação e lazer para jovens. O objetivo é criar uma sociedade que proteja o desenvolvimento infantil e reduza os estressores que ativam as vulnerabilidades biológicas.
Prevenção Secundária (Nível Psicológico e Comunitário): Este nível foca em indivíduos e grupos que já apresentam sinais precoces de risco. As intervenções incluem a identificação e o tratamento de crianças com transtornos de comportamento e dificuldades de aprendizagem nas escolas; o acesso universal e desestigmatizado a serviços de saúde mental para vítimas de trauma e abuso, com terapias baseadas em evidências para TEPT; programas escolares que ensinam habilidades socioemocionais, como empatia, regulação da raiva e resolução de conflitos; e policiamento comunitário focado na resolução de problemas, que busca construir legitimidade e confiança em vez de apenas reagir a crimes.
Prevenção Terciária (Nível do Sistema de Justiça): Este nível visa a reduzir a reincidência entre aqueles que já cometeram crimes. Em vez de serem meramente punitivos, os sistemas prisionais devem se tornar centros de reabilitação. Isso envolve avaliações forenses detalhadas para identificar os déficits neurocognitivos, as psicopatologias e os traumas subjacentes de cada detento. Com base nessas avaliações, devem ser implementados programas de tratamento específicos, como terapia cognitivo-comportamental para controle da raiva e dos impulsos, tratamento para dependência química e intervenções focadas no trauma. O objetivo final é devolver à sociedade um indivíduo com menor probabilidade de reincidir, em vez de um indivíduo ainda mais traumatizado e violento.
Adotar uma política de segurança pública baseada em evidências é um desafio monumental, que exige coragem política e uma mudança cultural profunda. No entanto, a ciência aponta inequivocamente nesta direção: a forma mais eficaz e humana de combater a violência é preveni-la em suas raízes.
7. CONCLUSÃO
A questão que motivou este artigo – "Como um ser humano se torna um assassino?" – não admite uma resposta simples. A análise aprofundada das dimensões social, psicológica e biológica revela que não há uma causa única, um interruptor que transforma uma pessoa comum em um homicida. Em vez disso, o ato de matar emerge como a ponta de um iceberg, o resultado final e trágico de uma confluência de fatores que se acumulam e interagem ao longo de uma vida. O comportamento homicida é, fundamentalmente, um fenômeno de desenvolvimento, uma trajetória de risco moldada por uma cascata de influências.
A tese central, sustentada pela vasta literatura revisada, é que o modelo biopsicossocial oferece o arcabouço mais robusto e preciso para compreender essa gênese. Ele nos permite ver como vulnerabilidades biológicas latentes, como predisposições genéticas ou particularidades neuroanatômicas, podem ser ativadas e exacerbadas por traumas psicológicos profundos, como o abuso e a negligência na infância. Esses traumas, por sua vez, não ocorrem no vácuo, mas são frequentemente fomentados por um contexto social de desigualdade, exclusão e normalização da violência. O paradigma da interação gene-ambiente (GxE) e a neurobiologia do trauma fornecem os mecanismos concretos que conectam essas dimensões, mostrando como as experiências sociais e psicológicas se inscrevem na biologia, alterando a estrutura e a função do cérebro de maneira a comprometer o controle dos impulsos, a regulação emocional e a capacidade de empatia.
A resposta à pergunta inicial, portanto, não é uma causa, mas um processo. Um ser humano não se torna um assassino devido a um "problema social", "comportamental" ou "congênito", mas sim através da interação sinérgica e destrutiva de todos eles. A falha não está em um único componente, mas na arquitetura de um sistema de desenvolvimento que falhou em proteger, nutrir e guiar.
Esta compreensão complexa e multifacetada não tem como objetivo eximir a responsabilidade individual ou desculpar o ato hediondo do homicídio. Pelo contrário, seu propósito é iluminar os caminhos da prevenção de forma mais eficaz e inteligente. Ao identificar os múltiplos pontos de falha na trajetória que leva à violência, a ciência nos oferece um mapa para a intervenção. A conclusão mais premente que emerge desta análise é que a maneira mais segura, ética e, em última análise, econômica de impedir que futuros assassinos sejam criados é investir maciçamente na construção de sociedades mais justas e solidárias, na proteção integral e no desenvolvimento saudável de todas as crianças, e na implementação de políticas públicas baseadas em evidências, que busquem curar as feridas do trauma em vez de apenas punir suas consequências. A prevenção da violência começa muito antes do crime, no berço, na escola e na comunidade.
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